outubro 30, 2017

o momento

©Jack Vettriano

Naquela noite abraçaram-se e choraram. Uma intemporal história de amor, momentos únicos na vida de alguns. Ela que o amou como a ninguém, ele que a amava mas estava amarrado a outra vida. Nesse noite ela disse basta, ia fugir, ele pediu tempo sabendo que não o tinha. Entre juras de amor, choraram lágrimas profundas. Era o fim. Noite que jamais se repetiria e que jamais seria contada a alguém. Essa noite abriu uma cicatriz que não se ia fechar. Iria largar sangue de tempos a tempos, cada vez menos, mas sem nunca fechar. É o momento duro dos amores que não são, ou não podem(?), ser concretizados.

Deste dramático momento nascem muitas histórias. O que foi feito dela e dele? Como lidam com aquela cicatriz sangrante? Que história conduziu àquele momento? Enfim, um mundo de possibilidades.

Certo é que aquele momento marcará sempre as vidas deles, o modo como irão viver o resto das suas vidas.
Demos largas à imaginação.

Gosto tanto de conhecer histórias, e elaborar planos a partir daí.  Os porquês e os como da vida das pessoas fascinam-me. Não no sentido mórbido de voyeurismo.

As esplanadas tardias deste Outono que não chega, onde me deleito na observação de quem passa, é terreno fértil para minha sequiosa imaginação. 
Mas faz-me falta o Outono, muita.

outubro 28, 2017

igual

Tudo começa com o mecânico gesto de desligar o aviso sonoro do telemóvel. São horas de mais dia. Segue o assentar dos pés no chão, a constatação de que se respira, e os lembretes para fugir de vícios que matam. Um copo de água e todas as rotinas da higiene. O relembrar dos temas importantes do dia, o olhar baixo porque falta algo, o conforto da água quente na pele e mente secas. A vida a rodar, um fiar constante e igual, a realidade que se vive como se fosse outra dimensão, o déjà vu de quem não vive.

O triste constatar, estás vivo mas não vives. A vontade de chorar, o aperto no peito. A redundância de tudo. Aqui chegaste, respiras apenas, uma vida cheia de nada, vazia de tudo. Flash rápido. É tudo um truque do teu cérebro. Não, é oficial, respiras mas estás morto. Pior que veres a cru a normalidade da tua vida, é a dor de nada fazeres. Ó dia, foge, deita-te na noite, vai. E choras, só, ao espelho do carro, onde passa o nada dos anos para trás.

Os poetas estão mortos. Sim, já ninguém os lê. Ler? Ninguém lê ó estúpido, é tudo imagem, em barda, muita e feroz. Os olhos abertos que nada vêem. Cegos pelo excesso, abertos a todo o inútil. Os poetas estão mortos.

Ninguém te ama como eu.
Ninguém te ama como eu.

Finalmente a amiga noite. Dorme. Não tarda o gesto mecânico. Outro dia igual, para ti morto que respiras e cego de olhos abertos.

No final a maioria acha que viveu.

Deixar de ser normal, para ser feliz?

outubro 08, 2017

correndo riscos

Lisboa, e o seu Chiado, serão sempre assim para mim, um preto e branco em dia de sol. E tu como sempre, com poder de me deixar sem palavras.

Como eu gosto deste cinzento.

Correndo riscos aceitei o convite.

O teu sorriso só tem par na beleza do cenário. 

Noutra vida, tu serias perfeita na minha Lisboa. 

Correndo riscos, é certo.

Ou talvez não.

"encruzilhada, como nós"

"cultura rica"

"és religiosa"

"ponto de encontro"

"a nossa janela"

"recanto para um beijo?"

"um mimo"





outubro 04, 2017

poesia pura

©Conlin Finlay
Rwanda 1994


- Não sei fazer poesia, sinto-me ridículo, exposto. Gosto de ler. Mas aquilo tem regras, não gosto de regras a escrever.
- Não sabes fazer poesia? Não tens reparado nos teus filhos... O que achas que são? Serão sempre o teu melhor poema.

As crianças serão, provavelmente, o melhor poema do Homem. É preciso que o Homem o saiba.

outubro 03, 2017

dourado

marmeleiro de jardim
Cydonia Oblonga


Não escondo a minha alegria no dourado que já se vê, as folhas que já caem, as pêras e maçãs que já se desprenderam das árvores, os marmelos, bem amarelos, maduros a pedir apanha. É o Outono. O frio já se anuncia de noite, não tarda o toque final na pintura que é o cheiro das castanhas. Já apetece ficar agarrado ao caderno, a juntar letras, adjectivos, sonhos e ficções. É o Outono, e faltas tu a dividir a manta.
Esta tela de dourado só encontra par na cor de ouro das areias do deserto. Ali encontrei a minha finitude, tão pequeno como qualquer um dos milhares de milhões de grãos de areia. Um somatório de minúsculos que formam um gigante. E não é isso que somos no mundo, minúsculos mas essenciais ao todo. Não é amigo este mar dourado, é seco a mostrar a minha pequenez, confronta-me com os meus medos. É algo que já me fazia falta, ver e medir as minhas falhas. Curiosamente não fez sonhar, não fez tomar decisões. Esse poder em mim só o gigante azul, só o mar tem o poder de me fazer sonhar. O mar e tu.