junho 30, 2017

voz

© Al Margen

Que semana escura, trabalhosa, salpicada de aguaceiros. Só não a perdi porque ouvi a tua voz, e também a ouvi nas ondas do mar, que fiz questão de ver todos os dias. Sempre salvo pelo mar. Pior, a próxima será pior, caminho arrastado, preso por grilhões, para a próxima semana. Mas o meu mar não foge, nem a tua voz.

Sobre Al Margen sei pouco ou nada. Vive em Buenos Aires, tem uma página no facebook onde mostra  os seus desenhos. Sei que retrata bem, em desenho simples, o vazio que são as minhas semanas, às vezes.


© Al Margen











junho 22, 2017

Dois loucos da Cuca

© Olle Carlson

ando numa fase de guardar todos os pedaços de riqueza que encontro. felizmente nem tudo é físico. este espaço é dedicado a loucuras que enchem a alma e o coração... este meu sentir deve estar relacionado com a estação do ano. Não posso não guardar as mágicas palavras que a Cuca, a Pirata disparou do seu galeão, e que certamente todos leram.


Dois loucos

Quando a guerra chegou e as gentes partiram com a triste roupa no corpo, quando os pianos e os lustres e os espelhos foram abandonados ao pó e ao saque, quando os invasores encheram as ruas e acenderam fogueiras no soalho das salas, quando as colunas de fumo afugentaram as últimas aves, quando as bombas destruíram todos os muros e o sol foi oculto por milhões de partículas de caos, sobraram, ainda, uns metros de jardim de laranjeiras no cimo do monte.
E nós permanecemos deitados, na imobilidade eterna de uma cama de baloiço de seda branca, sob a sombra das duas ou três árvores sobejantes, distraídos do ruído dos homens pelas notas de jazz, concentrados na métrica do.poema de fim de tarde, alheados da destruição pela beleza das asas de uma borboleta, protegidos do horror pela incapacidade de o representarmos.
E enquanto a guerra nos lambia os pés, espantava-nos o assombro dessa aurora lilás que sonhávamos ter nascido apenas para nós.
Foi assim que nos tornámos imortais.

de Cuca, a Pirata





junho 21, 2017

Giulietta

© Rankin
Black Tuuli II, 2006



Hoje não temos mais nada só a Giulietta, mas queira aguardar, por favor. Sentei-me a imaginá-la, latina e jovem. Vi-a de preto, lasciva, libidinosa, obscena, e a redundância dos adjectivos foi crescendo em mim. A brisa da ventoinha de serviço acalmou o ímpeto interior. O salto alto, firmeza do andar, a cara dos homens perante o desfile de tamanha beleza, a certeza de quem sabe que impressiona. Uma brisa no seco do ar. Senti a sua pele, seda, o cheiro, fresco. Agora distante, espero que os meus olhos não me tenham denunciado. Vamos então? A Giulietta era branca, jovem e tinha quatro pneus novinhos, era italiana, tinha um colo agradável, e já não combina de todo comigo.

certamente que tais pensamentos decorrem do solstício, que sejas bem vindo, porque a seguir vem melhor.

psycho killer (epílogo)

© Paolo Troilo

todas as histórias deviam ter um epílogo, escrito ou imaginário.

esta tem, e com um agradecimento muito especial ao ilustre Impontual, cujo selo de qualidade é de todos conhecido.


psycho killer (epílogo)


by Impontual




(...)
Duarte estava agora a aguentar toda aquela cena, completamente virado para dentro, da mesma maneira que aguentava tudo. As palavras "ainda há pouco pedias a Deus por sinais" abriram caminho pela sua mente como grotescas enguias nadando em águas pesadas cheias de algas negras ondulantes, rodopiando e redemoinhando à volta umas das outras. Agarrou com firmeza o último copo, formando com ele uma dupla compacta: solitários, sofredores em silêncio, devoradores de vidas inconsequentes. Era difícil abandonar-se, render-se. No fim do dia tinha sempre vontade de dormir sozinho. Despiu-se e encheu a banheira. Ficou de molho durante imenso tempo, folheando umas revistas que nem teve o cuidado de não molhar. Bebericou as últimas gotas de bourbon que repousavam no fundo do copo. Na boca ficou-lhe um travo a chuva. Quando sentiu que a água quente tinha cumprido o seu papel, aliviando-lhe a tensão das pernas e concentrando-a no sexo, masturbou-se, arqueando o corpo no momento crucial para romper a água e ejacular para o ar. Para espanto seu, uma gota de esperma bateu na lâmpada pendurada no tecto, com um som crepitante, projectando uma sombra trémula e fugidia.

- "Deus queira que Deus não exista, Deus queira que Deus não exista", vociferou de olhos semi-cerrados


junho 16, 2017

psycho killer (parte 2)

© Kelly Reemtsen

Duarte acendeu o isqueiro. O anjo aproximou-se e acendeu o cigarro. Confirmou que a voz de anjo conduzia mesmo a um anjo. Cabelo negro, brilhante, pouco abaixo do ombro, olhos verdes, lábios de contornos perfeitos. Um rosto que no seu todo emitia uma aura, como é expectável num ser divino. Vestido preto, pouco acima do joelho, e costas desnudadas de pele brilhante, parecendo seda.

- por favor, sirva-me outro, e outra bebida para a senhora.

O intuito era claro, perceber se de facto estava na presença de uma mulher, um anjo, ou era uma visão fruto do álcool.

- a senhora tem nome?
- Sara. Mas o nome não faz a pessoa. É o inverso, a pessoa é que faz o nome. Ou seja, é o que o faz que conta.
- pois é... Eu sou Duarte, e o que faço está à vista.
- não se martirize, conheço o género. O meu pai morreu dessa morte lenta.

Ficou aquele silêncio audível, cómico até, de duas pessoas que querem falar mas não sabem o que dizer, partilhado com sorrisos.

- sabes...
- não diga nada. Eu sou tola, e acabo sempre por me apaixonar por quem... enfim, por quem já tem problemas que chegue.

Duarte estava sem palavras. Um anjo apaixonar-se por ele? Afinal Deus existia, era o sinal. Tamanha beleza não precisava de palavras, não queria saber nada dela, só ama-la em seus braços.

- desculpe, isto é repentino. É um disparate, mas acho sempre que posso salvar pessoas, talvez por não ter salvo o meu pai.
- confesso que nem sei o que dizer...
- não diga nada, vamos começar do principio, por favor!

Neste mesmo instante, dois homens de gabardine creme aproximaram-se. Um deles algemou Sara. Num gesto repentino Duarte levantou-se, mas logo sentiu a mão do segundo homem a empurra-lo de forma ligeira para o banco.

- fique sentado, tenha calma.
- mas afinal que palhaçada é esta! - gritou Duarte
- Já lhe explico, acalme-se. Antunes leva-a para o carro.

Sara olhou para trás, para Duarte, e sorriu. Mandou-lhe um beijo.

- faz o favor de me dizer quem é, e o que é que se passa aqui?
- acabei de lhe salvar a vida...
- o Sr. é louco, e vai ter que se explicar.
- acalme-se se faz favor. Sou o Inspector I., trabalho na Polícia. Esta senhora é uma psicopata, e assassina. Estamos em crer que matou 6 homens, todos alcoólicos.
- matou? Como?
- seduzia-os. Levava-os para sua casa, drogava-os, e depois ainda com vida cortava-os aos bocados. É como lhe digo, acabei de lhe salvar a vida.

Duarte olhou para o barman, e fez sinal.

- mais um, puro, por favor.
- ouça o álcool vai matá-lo. Hoje salvei-lhe a vida, mas do álcool preciso da sua ajuda, preciso da sua vontade de viver.
- Inspector, estou cansado desse discurso moral. E afinal o que lhe interessa a minha vida?

Neste instante o Inspector já tinha virado costas. Mas Duarte ainda ouviu as suas palavras:

- Ainda há pouco pedias a Deus por sinais. Não consigo dar-te sinal maior.

Fim.



psycho killer
by
Talking Heads


bom seria que o Impontual escrevesse o epílogo desta pequena brincadeira.

talvez o whiskey fosse ordinário, e o Duarte alucinou. Mas mais cego é o que não quer ver, ou teve mais sorte que juízo, ou voçês é que sabem...

e se Deus existisse assim mesmo?













junho 13, 2017

psycho killer (parte 1)


©Kelly Reemtsen

Quando se tem um problema, uma dependência, de álcool, qualquer bar recôndito, numa qualquer cave de prédio, assume contornos de paraíso reconfortante. Foram os pensamentos de Duarte ao descer os degraus escuros, iluminados apenas pelo néon azul sumido que dizia "Bar". A fraca luz continuava no interior. Não prestou atenção ao seu interior, caminhou rápido para um banco alto ao balcão.  Puxou de uma nota, largou-a e disse:

- Whisky barato, e vá enchendo.

O barman, já grisalho, não largou o pano dos copos, fitou-o, e leu-o de cima a baixo, treinado pela experiência.

- Boa noite. Tem preferência de marca? Gelo?
- Não, e não é preciso gelo.

Enquanto servia, atalhou:

- Fechamos às quatro.

Reconheceu logo os traços de um alcoólico, a rapidez em ser servido, o alhear do espaço envolvente, a nota à frente, gestos e gestos já gastos à sua vista.

Duarte levou o copo à boca e logo sorriu. Só o cheiro forte já o acalmava, o sabor destilado encheu-lhe o corpo. Acalmou ao ver o fundo turvo do copo. Ganhou novamente o controlo das suas mãos trémulas.

- Peço desculpa. Boa noite. Podia servir-me outro?

Não levantou a cabeça do balcão em madeira gasta disfarçada com verniz, também ele já gasto. Tinha vergonha, da sua figura débil e dependente, da sua falta de maneiras, e no fundo do resto de homem em  que se tinha transformado.

- Aqui tem.
- Obrigado, agora já agradecia duas pedras de gelo.

Sempre sem tirar os olhos do copo, do balcão e agora do maço de cigarros que tinha pousado, Duarte sentia o corpo retomar à normalidade. A cabeça já não estava pesada, as mãos já não termiam. A música que passava era Sinnerman de Nina Simone. Duarte sorriu, lembrou-se do seu início: "oh Sinnerman, where you gonna run to?". Já sei meu Deus que sou pecador. Já sei, pensou. Devias mandar-me outros sinais, e não evidências. Pensar em Deus, pensar em como tinha chegado aquela cave, pensar em como a sua vida era ela própria uma cave escura, faziam doer a cabeça cansada, por isso resolveu levantar a cabeça e ver em volta, procurando distracção.

Rodou à direita. Era só mais um bar, escuro, com jazz rouco em colunas velhas. Uns quadros com fotografias de mestres como Miles Davis e Louis Armstrong. Meia dúzia de mesas pequenas, com candeeiros. Uma espécie de palco, um estrado, onde outrora tocaram aspirantes a mestres. Numa mesa um casal, trocam beijos e mãos, e gastam o pouco que sobra do rendimento. Noutra mesa, mais abastados, um casal gay que mantem distância física, mas que os olhos não escondem outras luxúrias.

Igual a tantos outros buracos negros, onde Duarte se arrasta faz dois anos, num suicídio lento, de comiseração degradante.

- Boa noite. Dá-me lume?

A meiguice da voz fez Duarte voltar-se rápido para a sua esquerda. Uma voz que indiciava a presença de um anjo.

(para continuar noutro post)


Sinnerman by
Nina Simone












O maior

Retrato de Fernando Pessoa
por Almada Negreiros

Parabéns Fernando, 
Alberto, Ricardo, 
Álvaro e Bernardo!

Bernardo, logo, quando na alegria do isolamento, que provavelmente já é outro dia, temos absinto marcado no livro do costume.


"... não há saudades mais dolorosas do que das coisas que nunca foram."
Bernardo Soares 
in Livro do Desassossego











junho 08, 2017

grandeza


pormenor de "A Criação de Adão"
de Miguel Ângelo

Desta feita foi a mim que coube a árdua tarefa de organizar o encontro de Amigos. Uma espécie de reunião, sem data definida, em que quatro almas celebram a amizade que os une. Mas desse encontro darei fé noutro post.
Quando a meia tarde alguém perguntou a um dos comensais porque​ motivo anda desaparecido aos fins-de-semana, ninguém podia imaginar a resposta. Com simplicidade respondeu: "passo a maioria dos fins-de-semana num centro de educação especial a dar comida e banho a deficientes profundos".
O silêncio que se seguiu era bem ilustrativo da perplexidade geral. 
Genuinamente aplaudimos de pé, encheram-se copos e seguiu-se um brinde.
Um brinde a um Homem grande, que se faz pequeno para nos mostrar o que é ser grande.


Já cá chegou o CD tão aguardado!

Obrigado, Filhos do Desespero



junho 05, 2017

Lição


Idyll
Tamara de Lempicka


As manhãs de Junho, ainda com nevoeiro, cheiram a mar, trazem calor em raios finos de sol, abrem mentes e despertam sentimentos. São dias de amar. Foi num agarrar destas manhãs, que gritam vida, que Lenita enviou a seguinte mensagem a João. "Hoje vamos fazer amor. Ao fim do dia passeio na praia, depois jantar. Amo-te. Beijos". João conduzia, contemplando o sol que nasce do lado de​ lá da serra, à direita, e à esquerda, o nevoeiro cerrado que tapava o mar. Muitas vezes falava com deus, como se um amigo mortal o acompanhasse à pendura. Quando parou o carro, leu a mensagem, e sorriu.
O dia foi rodopiando, e João deu por si, na pausa do cigarro, a sonhar com as curvas generosas de Lenita, os seus gemidos e carinhos de luxúria.

[...]

Arregaçaram as calças, sentiram o conforto dos pés molhados e da areia mole. Ela deu-lhe a mão. Caminharam, lentos e unidos. O pôr-do-sol é a hora que nascem os amores. Lenita sabe disso. O frio da água temperado com o quente dos corações, o silêncio cúmplice, e o lento dormir do sol, eram tudo o que Lenita tinha encomendado.

[...]

O jantar foi muito agradável. O peixe grelhado embalou conversas sobre gostos pessoais, música e pintura primeiro. O outro lado do peixe, bem grelhado, levou-os em viagens feitas e por fazer. O último copo de vinho, branco caro, entornou em literatura, em toques escondidos debaixo da mesa, e a mão dada com amor.

[...]

Em casa, na varanda, um beijo, olhares lascivos ritmados em álcool e fumo. O diálogo manteve a afinidade, e a volúpia.

[...]

Na cama, Lenita deu-lhe a mão e suspirou. João, com todos os sentidos despertos, alvitrou:
- pensei que íamos fazer amor!
- oh João! Não temos feito outra coisa desde o fim do dia! Vou dormir e sonhar contigo.

[...]

João fechou os olhos, e sorriu, como que assimilando a lição de Lenita. Demorou- se no sono, e lembrou-se das palavras de Manel Mau-Tempo, para a acordar com um beijo de manhã.

Malmequeres de um branco muito leitoso, com estames de amarelo-vivo, coroavam a cabeça pousada aos pés de um salgueiro. Aproximei-me dos lábios purpúreos e vulneráveis, julgando-a ensopada na morte. O pescoço de porcelana pintado de veias finas, pulsava levemente, ritmado com o voo das libelinhas azul-eléctrico.








junho 02, 2017

arte de seduzir



Partilho uma elegante maneira de ver a sensualidade feminina tão do meu agrado. 
Neste caso, partilho, não só da beleza sexual feminina, 
mas de um conceito mais lato. 
O jogo da atracção, a figura masculina, 
a feminina, 
posses, posturas e ambientes. 

A bonita arte de sedução.


" A time when the man would take
pride in shaving or simply fixing is tie. 
And the woman would follow
a routine of slow and sensual
movements, seducing a man just by
lighting a cigarette."

Fabián Pérez

Copyright © Fabian Perez 2017. All rights reserved.


At the door V

Brunette

Full Moon Empty Heart

Man lighting a cigarette

Marmol Negro

junho 01, 2017

rápido e bom

Faz hoje anos.
O único dia em que o mundo parou, por instantes, de rodar. Nasceu o meu primeiro filho.
Histórias, personagens ou ideias à parte.
Faz hoje anos que eu cresci muito.
Não se explica por palavras, sentimos, vivemos.
[Ponto]


é fantástico :)