maio 29, 2017

abraços intermitentes

the lovers II, 1928,
by Rene Magritte

Peço desculpa de ir buscar tinta antiga, rabiscada e gasta. São dezenas de cadernos, desde 1998. Muitos textos, personagens e ideias, faziam sentido à luz do seu tempo. Guardo todos e tudo, são meus, sou eu.
Hoje temos blogs, pese embora eu continue a não dispensar o aparo, a tinta e o papel. 
Achei curioso que depois de ler este pequeno texto lembrar-me de um que li sobre abraços. Faz quase um ano, e o texto da Laura Avelar Ferreira ficou sempre aqui, latente no meu arquivo biológico. Melhor assim, fica aqui guardado.

Saudade dos braços

Gosto.
Pele com pele
O sussurro: aperta-me
Cheiro com cheiro
Aqui, agora
Onde quiseres, sempre
Tenho saudades
Não digas nada
Tu já não dizes
Amarra-me
Ainda sinto os teus braços
Às vezes, de quando em quando.

[Abril 2007]

Abraçam-se entre intermitências.
Às vezes ela repele-o porque às vezes ela arreda-se de tudo.
Quer ficar em branco. Precisa de sentir o não sentir e lançar-se no vazio das formas e do todo.
Ele procura-a amíude. Entre cigarros apagados a meio e papéis com contas em atraso.
Às vezes saem para tomar um copo. Ela de vestido comprido a lamber a calçada húmida. Ele de calças largas e cabelos em desalinho.
Sentam-se numa esplanada improvisada, fora da casa que não é deles e ficam ali a inverter horas.
Quando regressam a casa, embriagados, abraçam-se mais. Em sítios pouco próprios, em sítios pouco usuais, em sítios que não conhecem, em sítios que se tornam sítios, no topo é do álcool e do desejo assumido.
Amam-se assim: intermitentemente, com álcool e abraços.

Laura Avelar Ferreira
[Agosto 2016]

Original aqui


maio 27, 2017

caixote

Escape Into Life,
Duy Huynh


amarrotado
no fundo do caixote
desembrulho-me para trepar
estou gasto, pesado, carregado de letras
amontoadas em palavras

uma​ vida
vivida em tons de tinta preta

neste esforço caem primeiro pontos e vírgulas
as exclamações estão já caídas
cansaram-se primeiro
interrogações não
estão encrostadas, são lapas

sou uma folha grande
vergada ao peso de palavras

luto para sair
as gotas do aparo, gordas, são o maior peso,
são as pausas da escrita

quase de pé
as pontas soltas,
ainda em branco,
cedem, vergam-se ao peso da palavra
aquela que mais pesa
são quatro letras apenas
mas foram escritas em mim 
gravadas demasiadas vezes

grito às exclamações:
amparem as letras
abano-me em suplício
caem quatro letras nas exclamações

solto, vou conseguir,
sou papel velho
com muita tinta fresca

empinam-se em força,
em desalinho
não é R, O, M, A !
grita uma exclamação
para terem força é A, M, O, R
alinham-se, cerram os dentes
empurram

finalmente consegui
saí do caixote
sem o peso do amor
saí leve como o que sou
uma folha de papel

estou cá fora
um papel amarrotado
branco, salpicado por pontos de interrogação,
pronto a ser reescrito

[Agosto 2016]




maio 26, 2017

silêncio

Sebastião Salgado
Sahara, 2009

um dia o mundo vai acabar
e já não tenho o teu cheiro,
já não sinto o teu toque.
nunca mais vou olhar
os únicos olhos do mundo
que me vêem por dentro.
encontrei no mundo o par perfeito,
e tu não estás aqui.
sabes que não há
metáfora de amor que nos explique,
e que a nossa história é demasiado grande,
para ser um hipérbole. 
sabes que poderia escrever
um livro inteiro de palavras sobre ti,
e não conseguir gritar a grandeza que és para mim.
sabes a dor que carrego? saberei eu da tua dor...
é ridículo este texto.
e assim vês,
não consigo escrever sobre ti.
és grande demais no meu coração,
e por isso não cabes no aparo.
um dia o mundo vai acabar
e o teu rosto será a minha última visão.

[Set.2010]


Anos de espera por ouvir novamente a tua voz, e o telefonema foi quase todo silêncio. E agora os dias têm passado e a minha cabeça só ouve o teu silêncio, e o meu silêncio. Hoje pensei que tamanho silêncio entre nós é o maior sinal que tudo está igual. Por tudo entenda-se o maior amor de sempre. Pedi desculpas por ter fugido. Limitei-me a escutar o teu silêncio. Ando irritado com o silêncio. Deveria ter-te dito que ainda hoje te sinto tal e qual, que até hoje não houve quem me desse o que tu deste. Como estou irritado com tanto silêncio! Vais me ligar de volta? Quem escreveu este nosso guião? Eu tenho todas as palavras para te dizer e fiquei mudo! Nem umas parcas palavras consigo alinhar. E o que temos para contar? Em 14 anos o que mudou?

Vou acreditar, que o teu e o meu silêncio foi a única maneira de gritarmos o nosso amor. Vou.


[...]

Ou a tentativa gorada de explicar um silêncio.











maio 20, 2017

branco gasto


Gastão de Brito e Silva,


acordei devagar. a lentidão era movida pela desconfiança. havia um cheiro que me lembrava as velhas drogarias. o lençol áspero, ocre, lavado, mas gasto. a colcha em amontoado aos pés, usada do tempo, em branco gasto. a cama tinha umas grades laterais, recentemente pintadas, de branco, mas sem esconder as falhas do metal corroído. o tecto, branco, de cantos amarelos do tempo. rodei a cabeça para a direita e logo vi um pequeno armário em metal branco. o quê, quem, me pôs ali. a cabeça dói, e o branco gasto contribuí para alienação. vejo homens deitados em camas velhas, os gemidos não param. tenho umas calças brancas. quem me vestiu. nasce em mim uma dor no peito. dobro-me em posição fetal, faço força para evitar as lágrimas. estou sozinho. abandonado. porquê. só há branco gasto, gemidos, um cheiro químico. quero chorar. apetece-me gritar. pressinto a chegada de alguém. uma mulher de branco imaculado, uma touca, um tabuleiro. fico com medo, não consigo articular palavra.
- o menino vai tirar sangue. depois mostro-lhe o chuveiro.
- onde está a minha mãe - balbuciei.
...

hospital santa maria.
desde então cultivo um medo de espaços onde predomina o branco. detesto, sinto pavor de hospitais e similares, e de batas brancas fujo. hoje estou bem melhor, e já vejo melhor a serenidade do branco.




Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.

Ricardo Reis, de Fernando Pessoa
[1923]


















maio 18, 2017

Às vezes

untitled (river), 2003,
by Teun Hocks,
toned silver gelatin photograph,
with oil paint

Sabes a beleza da música é, tão só, transportar-nos para nós mesmos, é um espelho. Às vezes do C.N.Gil, entra em mim como uma seta. É aqui que a encontras, clica não tenhas medo. Tanto me faz chorar, porque somos nós ali, como sorrir de alegria pela nossa história. Eu vi-te quando ninguém te viu, eras só uma ideia, um simples laivo de luz, e tu eras a única que me levava pela mão. Às vezes fugia de ti, com medo, e magoava-te. Hoje choro por ti, queria o teu abraço e o teu regaço, e já cá não estás. Mereço. Fiz-te mal com palavras.

Às vezes sou como o pintor da foto. Olho um dia bonito e um rio calmo, e desenho uma noite negra e um mar revolto. Só às vezes.


Às vezes


Às vezes és uma ideia que passa por entre laivos de luz
Às vezes és uma rua cheia de pessoas entregues a si
Às vezes pegas-me pela mão,
És tu quem me conduz
Às vezes largas-me e afastas-te de mim

Nem sempre estou assim tão perto de ti
Nem sempre tão longe
Que precises de gritar por mim
Nem sempre te amo
Nem sempre te quero
Nem sempre preciso de ti
Nem sempre eu choro
Mas hoje eu choro por ti

Às vezes só queria o teu abraço
Às vezes só queria deitar-me no teu regaço
Às vezes só queria olhar nos teus olhos
E descobrir neles minh’alma
A minha vida
Meus sonhos

Nem sempre estou disposto
A ouvir da tua boca
Palavras cruéis que magoam
Nem sempre eu posso
Deixar-me ao abandono
Enquanto as palavras


Soam


Mas importante é não esquecer 
que às vezes ajudar é simples.


Filhos do Desespero, C.N. Gil
capa de Isabel Pires

Bio
This album was recorded, mixed, and produced, with the help of a lot of anonimous people from portuguese blogs, turned in to a CD. It can be obtained either by transfering the value + mailing or a donation proof to UNICEF + mailing

All details (in portuguese):
http://filhosdodesespero.blogspot.pt/

Please enjoy, share and help children all over the world to have a better life.

Thank you,
C. N. Gil

Forte abraço para o C.N.Gil




maio 17, 2017

essência

nudes
Billy Kidd


um agarrar forte que nos leva
para dentro, à essência.
como a onda que nos esmaga,
enrola em violento bailado,
sem ar,
para o fundo do oceano,
silencioso.
assim é o teu abraço,
e o meu em ti.
quando és mulher, plena,
logo nos unimos com a força
da onda, sem ar, ficamos um só corpo.
ouço o teu respirar ofegante,
a levar-me, lento, para o nosso fundo,
até ao silêncio, nosso, só nosso, a essência.

...

ou quando vejo a força das ondas, e penso no teu orgasmo do princípio ao fim.


maio 12, 2017

loucura



The Son of Man,
René Magritte



a loucura, a não clínica, é saudável. a loucura bem medida faz o mundo girar, é o alimento que o roda dia após dia. e assim será aqui também, um porão que se moverá ao ritmo da minha loucura. não para ninguém, ou talvez para outros saudáveis loucos. será o meu repositório, será o tal "...lugar forrado a seda que ampara as palavras que nos apetece dizer e os sorrisos que deixamos cair.", que todos nós, os loucos, precisamos.


loucura | s.f.

lou.cu.ra
substantivo feminino
1.Alienação mental.
2.Insensatez; imprudência.
3.Extravagância.
4.Doidice, acto descontrolado ou irreflectido.